Dedico este texto à dor que rasga o
meu ventre e dilacera meu interior quebrantando o mais profundo questionamento
da minha alma. O significado da vida.
Como posso eu estar
Vivo? Não tenho grandezas nem sou supérfluo, mas também não tenho resposta que
possa ser dada a essa pergunta. Só sei que a gente um dia morre. E não existe
palavra que signifique a minha vida. Não entendo o porquê de estar escrevendo,
se é que existe mesmo finalidade para isso, mas algo me atrai para o papel. É
essa admiração corrupta do que não é belo, ou do que meus olhos moribundos
viram, do que é estranho e confuso. Nunca gostei do que é fácil, estou longe da
mediocridade. Apenas estou vivendo dias, fechado em um lugar pequeno e ermo,
sem nenhum luxo, e renunciei meus prazeres para ver se conseguiria sentir o que
é ser anódino. Queria eu, entender a beleza, o prazer da atração que me traz
aquele ser que só de ser visto causa repugnância a qualquer homem de bem. Ela é
um nada. Mas como nada ainda é muito, nem isso ela pode ser. Ela é insossa e
impenetrável. Ninguém nunca olhou pra ela, nem ela se olha por dentro. Quem é?
Não importa, ela é ninguém.
Todos os dias, usa para
trabalhar roupas que desprezam o mínimo da moda. É magra e deslustrada, e seria
um insulto compará-la a um cachorro esguio de rua. Porque este pelo menos
possui a liberdade de ser. Uma vida parca, insignificante. Mas era uma mulher,
e ela me atiçava como uma feiticeira. Nada nem ninguém me atordoaram tanto. Já
não tenho ciência de como isso tudo vai terminar. A nordestina, ela me causava
enjôo. Ela era bem como eu, vivia para si o presente. E se um dia se casar, vai se casar de branco,
virgem e intocável. Mas tenho em minhas mãos o traçado de uma história triste.
Talvez outro dia eu escreva uma história bonita, daquelas que fazem a gente
chorar e soluçar de emoção. Mas agora quero buscar a verdade nua. Tenho nas palavras
o destino de uma moça que nem pobreza enfeitada tem. Pois que a datilógrafa
está montada em meus ombros. Vejo-a de frente para um espelho e nós nos intertocamos.
Mas eu sou tendencioso, e nesse meu malabarismo, posso palavrear de modo a
fazer com que o outro me acompanhe. Parei de ler meus livros, não posso me
contaminar, preciso ganhar a mais humilde simplicidade, minhas palavras não
podem ser alucinógenas, precisam ser diretas. Preciso me absorver de uma vida
sem significado. Porque é assim que vivia a moça, apenas respirando. Não era
dada a perguntas, pois em sua infância no sertão Alagoano, aprendeu que ‘menino
e tamanco só debaixo do banco’. Jamais perguntava nada. O que é, é, e ponto
final. É assim, porque é assim. Mas eu sofro por ela. Só eu, a vejo
encantadora. Dormindo com sua combinação suja e fétida. Suas colegas de quarto
jamais diriam o quanto ela era feia e destoante do restante do mundo. No dias
de inverno se encolhia naquele quarto apertado, na rua do Acre, perto do Cais,
ouvindo os cães que uivavam para o luar, e logo pela manhã vez ou outra o galo
cantava. Recordava então da infância deitada na cama, enquanto ouvia os roncos
do estômago que rosnava de fome. Mas ela tinha lembrança das dores, como se ao
medo fosse designado um prazer característico que nem ela entendia a razão. E é
mesmo, às vezes a vida se sente na vontade de doer. Fora criada pela tia beata
em Maceió, seus pais morreram de febres ruins. Quando criança levava cascudos,
e cada qual parecia lhe arrancar os miolos da cabeça. Mas a dor maior era ser
privada do seu gosto mais saboroso, seu único prazer na vida a sobremesa de
goiabada com queijo depois do almoço. Era a dor e o prazer caminhando sempre
juntos. E como a tia tinha deleite em deixá-la sem o gosto do desejado doce.
Era castigo, mas nem ela sabia a razão de tantos castigos. Mas quando se é
pobre assim não é preciso saber explicar nada. E não há pobreza nesses olhos
que me lêem. Isso aqui é dispensável para os pobres. Isso é para essa média
burguesia, válvula de escape da vida massacrante. E ela dormia um sono profundo
e superficial, tinha crises de tosse quase todas as noites, mas nem reza, as
quatro Marias lhe prestavam. Companheiras de quarto que trabalhavam nas
Americanas e despencavam de sono todas as noites. Mas a nordestina não sabia o que era ter
gosto na Vida. Às vezes sonhava com carne seca, mas o jeito era comer papel bem
mastigadinho para a fome passar. Essa narrativa é sobre uma incompetente, mas
uma incompetente para a vida. Ela me ascende à dor que rasga o meu âmago. E dói
tanto que sangra vermelho carmim. E está rasgando meu interior, é essa dor
maldita, imprescindível que me acompanha todos os meses. Mas a moça nada tem a
ver com a minha dor, a dor é minha, ela é que é o inverso que justifica a dor.
Mas ela tinha dor, e a vida dela era dor. Mas ela não sabia viver a dor. Ela
não sabia existir. Mas existir não é lógico se a ordem é morrer, mas se morrer
é a ordem lógica e ela não sabia existir, ela também não sabia morrer. Era mesmo uma imprestável.
Trabalhava na Rua do
Lavradio, era datilógrafa na firma de representante de roldanas. De ombros
curvados como uma cerzideirinha aprendera o curso de datilógrafa, mas era
péssima, escrevia com diversos erros e constantemente sujava o papel. Não
chegava a mendigar comida, mas os únicos luxos que possuía, eram ir ao cinema
uma vez ao mês e pintar de modo borrado as unhas sujas com um esmalte vermelho
escarlate bem forte. Às vezes comprava uma rosa com o dinheiro que recebia e
comia um ovo cozido em algum botequim. Rezava todos os dias três Ave Marias seguidos
também de três améns. Tudo, porém, sem muito significado, pois ela nunca
houvera experimentado Deus. Mas não perderá a fé. Afinal, quem disse que é
preciso ter em quem, ou o que acreditar para se ter fé. Não sabendo ela que de longe sua vida era
infeliz. Nunca vista, nunca sentida, sempre aquele farrapo. Eu tenho raiva dela,
mas ela não reage. (Explosão!) 'Porque há o direito ao grito. Então eu grito.
Grito pulo e sem pedir esmola.' Sei que há moças que vendem o corpo, única posse
real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas essa
moça, ela mal tem corpo para vender, não faz mal a ninguém.
Seu chefe Raimundo
Silveira, dia desses por não mais suportar a ninharia que ela representava,
resolveu por despedi-la. Ao contrário dela, sua colega de trabalho Glória era
uma mulher de presença muito mais forte. Filha de açougueiro representava muito
mais que ela e, por conseguinte seduzia muito mais os homens. Não era bonita
também, mas era corpulenta, e isso já serviria aos olhos de muitos. Mas a
datilógrafa que não era mais datilógrafa, era agora apenas mais uma nordestina
no Rio de Janeiro. Nesse dia foi ao banheiro, olhou-se e viu a sua imagem quase
não captada pelo espelho embaçado. Ela era uma nódoa no mundo. Nem sangue
corria pelas veias daquele rosto esquálido. Por isso ela jamais poderia
derramá-lo. Uma incompetente! Não servia nem para reclamar o emprego.
Em casa sem nada mais a
fazer durante a noite, ligava o rádio bem baixinho e deixava-se levar escutando
a Rádio Relógio que informava a hora e também dizia umas curiosidades que ela
achava graça em decorar sabe-se para qual finalidade, mas é sempre bom estar
informado, era cultura. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era
na terra dele chamado de Carolus. Ouvira também que o único animal que não
cruza com o filho era o cavalo. Mas ela também tinha medos, ela possuía medos
que pareciam bons prazeres. Como quando passava um soldado perto e ela pensava
– será que ele vai me matar? – Isso era bom e ruim, pode ser ambíguo, mas
trazia prazer. Essa moça era assim tão comum que me causava arrepios. E se me
perguntarem o que eu vou escrever em seguida, esqueçam não possui valor, perdi
a hora do encontro. Rasguei as páginas.
Mês de Maio dois
nordestinos se encontraram na rua no meio de uma chuva, se reconheceram como
dois animais no cio. Passaram a passear e ele para ela já era como se fosse uma
goiabada com queijo. Até que o a pergunta mais incisiva vibrou no ar.
-
E se me permite, qual é mesmo a sua graça?
-
Macabéa.
-
Maca, o quê?
-
Béa, foi ela obrigada a completar.
Constrangida explicou que o nome era
devido a uma promessa que a sua mãe havia feito a Nossa Senhora da Boa Morte,
para que a gestação vingasse e ela não morresse durante o parto. Os dois
caminhavam e quase nenhuma palavra era dita. Macabéa com medo de que o silêncio
já significasse uma ruptura, diante de uma loja de ferragens disse ao
recém-namorado:
-
Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Todas as vezes que saíam juntos chovia.
O nome do rapaz ela só veio descobrir depois de uns três ou quatro encontros.
Olímpico de Jesus Moreira Chaves, o Chaves e o Moreira não existiam, era
mentira. Só havia nele de verdadeiro mesmo o de Jesus. E esse homem não era
dado a amores, era um pobre assim como Macabéa, operário metalúrgico. Porém com
ambições. E o que tinha ela a oferecer-lhe? Nada que não fosse seu corpo murcho
de vida. As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne
de sol, carne-seca, rapadura, melado. Pois esse era o passado que ambos
compartilhavam, e eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já passou,
é sempre acre-doce e dá até nostalgia. Pareciam irmãos, mas irmãos não se
casam. Eles iriam se casar?! Não sei, mas a história vai se seguindo assim.
E como seria provar o
gosto de sangue? Será que esse sentido chegaria a Macabéa? Será que ela saberia
o que é ser vermelho? Só eu a amo e mais ninguém.
Foi numa noite fria de
Junho, Macabéa e Olímpico caminhavam juntos pelo Cais, como é de se admirar
naquele dia não choveu. Pode ter sido porque Macabéa não queria chover nesse
dia. Porque a chuva apagava o calor dos dois. E todos hão de convir que as
pessoas mereçam uma chance. Eles não se tocavam, mas Macabéa já sonhava com
Olímpico. Vivido e ‘rodado pelo mundo’, não poderia ser esperar muito de um
“cabra safado”, assim se fala no nordeste, desses. Mas Macabéa não tinha mais
medo do silêncio e pouco importava quem era Olímpico antes de conhecê-la, se
era rapaz de boa fama ou não, porque Olímpico já fazia parte dela, ela já o
amava. Foi então no silêncio que se deu o ocorrido. Dois olhares, duas mãos, um
instante, toques, movimentos, suor, e era então Macabéa, a inócua virgem
inseminada por um calor que subia e descia rapidamente pelas pernas. Ela não
conhecia o gosto, mas sabia que a entrega era seguida. Era uma fome vertiginosa,
uma vontade de ser o outro de entrar em contato com a carne. E aquela
datilógrafa sentira pela primeira e única vez na Vida o que era ter prazer.
Prazer do gosto de homem, e a partir dali era já não seria a mesma. Ela era mulher
para alguém. Ilusão de escritor poético, para Olímpico era mais uma. Clímax e
fim. Estava agora deitada em um lugar escondido, Macabéa, pensando no que havia
acabado de experimentar. Ela era agora o prazer indescritível dos sentidos.
Estava liberta. Achava-se errada, pecadora e imoral. Não iria mais se casar de
branco. Mas foi nesse dia que Macabéa viveu.
Olímpico apaixonara-se
por Glória, sua colega de trabalho, com que já vinha traindo a pobre faz
tempos. Mas agora Macabéa- mulher já sabia o que era a vida diferente do que
ela sentira antes. Não iria mais se casar. Mas isso não havia ganhado tanta
relevância. O futuro com Olímpico pouco nos importa ele era mais um coitado. Havia algo maior acontecendo, uma revolução. Dentro
dela começara a crescer a semente de uma nova vida. Mas ela sim, agora era Grávida.
Nem todas as mulheres conseguem o dom dessa preciosidade da vida. Uma forma
inexplicável de perpetuar a espécie concedendo a ela características únicas de
cada um. Esse ser em formação, pequena semente plantada em terreno seco e
infecundo desenvolveu-se em vida. Imediatamente Macabéa tornara-se importante. Mas
só se sente a vida quando se sangra, e foram nove meses depois que Macabéa
sangrou, gritou, doeu, rangeu dentes, e dela nasceu a mais nova órfã, que
Macabéa chamou de Dolores, aquela que vem das dores trazendo vida. E tudo é
explicado porque só se suporta a dor em busca de um objetivo maior, porque se
quer viver, a dor é a doação que nos torna vivos. Ela é o ponto vital que nos
torna humanos. E foi neste sopro de vida inteira que Macabéa de repente experimentou
a morte. Como único momento em que foi o centro de toda razão da existência,
ela era a estrela, porque se soube doer mais que a própria vida e sabia a razão
da dor e tinha motivos para doer e brilhar intensamente. A morte era um
encontro consigo. Morta, os sinos badalavam, mas sem que seus bronzes lhes
dessem som. Agora entendo esta história. Ela é a iminência que há nos sinos que
quase, quase badalam. A grandeza de cada um. Pois é, só se sabe viver quem um
dia se doeu.
E eu?! Só agora me
lembrei que a gente morre. Mas... Mas eu também?!
Não esquecer que por
enquanto é tempo de jambos.
Sim.
Alana Gonçalves da Silva Gusmão, Thainara Barros da Rocha e Viviane Brito Franco.
Releitura - LISPECTOR, Clarice / A hora da Estrela - Rio de Janeiro: Rocco, 1998.1ª Edição.