3.3.12

(In)feliz Clandestinidade


A vida tratou de fazer com que a felicidade fosse para mim algo vedado. Não sei com que gosto ela fazia com que os meus sofrimentos fossem o mais adequado dos cotidianos. Então tudo que tinha sabor de felicidade tornava-se defeso, e a única maneira de aproveitar era atribuindo a essa alegria uma feição ilegal. Carnavais, livros, todos esses prazeres pareciam que não foram feitos para mim. Ah!, Mas com que gosto o ilegal faz bem, como era bom fazer desses momentos clandestinos o maior dos sentimentos que alguém pode ter quando quer se sentir vivo. E assim eu ia vivendo, burlando a impiedosa vida, e sendo feliz à minha maneira.

Mas voltemos ao Monteiro Lobato, voltemos às Reinações de Narizinho. Agora ele era meu amante, e eu criava as situações para nos deleitarmos um com outro, nada muito longo, nada muito extensivo, pois a vida nos espreitava com seus olhos de lei, para me impor a minha lei. Que não fossem longos, que não fossem duradouros, mas eram os melhores momentos e particularmente, como acontece com todos amantes, a vivência desses momentos fazia com que os interstícios fossem não felizes, mas ainda sim esperançosos e saltitantes, pois a hora de estar com ele haveria novamente de chegar e assim minha boa fortuna se faria.
Quanto tempo vivemos assim¿ Não sei, mas tampouco importa, foi tempo suficiente para que meus dias tomassem um brilho distinto, para que meus cantos tomassem outras formas, outros sons, e antes de tudo, para que minha lei, antes tão pouco incontestável, tomasse formas menos duras agora.
Procrastinar a devolução dava-me uma idéia de que aqueles momentos se tornariam eternos, mas não, o tempo protraído não fez com que a hora indesejada não chegasse e para minha consternação o momento que findaria minhas felicidades chegou. Era hora de tornar o livro a sua dona.
Lá estava eu pelas ruas, com o passo lento, tentando ainda adiar ao máximo a entrega, com aquela idéia ainda em mente. Quem sabe o passo lento não tornaria esse amante agora meu. Mas não, não teve jeito, a vida não apaziguava, a vida não me dava aquilo que eu queria.
Então estava eu novamente à porta da filha do dono de livraria, como tantas vezes lá estive com esperança, com planos que ela sempre suprimia, mas que se refaziam sempre na esperança da leitura. Devolvi, e talvez fosse isso, ele nunca fora meu de verdade, era dela. Esteve comigo o tempo certo, mas nossa relação era delimitada, tinha prazo, tinha fim. O fim chegou.

Victor Filipe Costa Lima e Vítor Cangussu.
Postado por Clarice Lispector às 12:52 0 comentários
3.3.12

(In)feliz Clandestinidade

A vida tratou de fazer com que a felicidade fosse para mim algo vedado. Não sei com que gosto ela fazia com que os meus sofrimentos fo...
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Minha Dor de tempos em tempos.





Dedico este texto à dor que rasga o meu ventre e dilacera meu interior quebrantando o mais profundo questionamento da minha alma. O significado da vida.

Como posso eu estar Vivo? Não tenho grandezas nem sou supérfluo, mas também não tenho resposta que possa ser dada a essa pergunta. Só sei que a gente um dia morre. E não existe palavra que signifique a minha vida. Não entendo o porquê de estar escrevendo, se é que existe mesmo finalidade para isso, mas algo me atrai para o papel. É essa admiração corrupta do que não é belo, ou do que meus olhos moribundos viram, do que é estranho e confuso. Nunca gostei do que é fácil, estou longe da mediocridade. Apenas estou vivendo dias, fechado em um lugar pequeno e ermo, sem nenhum luxo, e renunciei meus prazeres para ver se conseguiria sentir o que é ser anódino. Queria eu, entender a beleza, o prazer da atração que me traz aquele ser que só de ser visto causa repugnância a qualquer homem de bem. Ela é um nada. Mas como nada ainda é muito, nem isso ela pode ser. Ela é insossa e impenetrável. Ninguém nunca olhou pra ela, nem ela se olha por dentro. Quem é? Não importa, ela é ninguém.
Todos os dias, usa para trabalhar roupas que desprezam o mínimo da moda. É magra e deslustrada, e seria um insulto compará-la a um cachorro esguio de rua. Porque este pelo menos possui a liberdade de ser. Uma vida parca, insignificante. Mas era uma mulher, e ela me atiçava como uma feiticeira. Nada nem ninguém me atordoaram tanto. Já não tenho ciência de como isso tudo vai terminar. A nordestina, ela me causava enjôo. Ela era bem como eu, vivia para si o presente.  E se um dia se casar, vai se casar de branco, virgem e intocável. Mas tenho em minhas mãos o traçado de uma história triste. Talvez outro dia eu escreva uma história bonita, daquelas que fazem a gente chorar e soluçar de emoção. Mas agora quero buscar a verdade nua. Tenho nas palavras o destino de uma moça que nem pobreza enfeitada tem. Pois que a datilógrafa está montada em meus ombros. Vejo-a de frente para um espelho e nós nos intertocamos. Mas eu sou tendencioso, e nesse meu malabarismo, posso palavrear de modo a fazer com que o outro me acompanhe. Parei de ler meus livros, não posso me contaminar, preciso ganhar a mais humilde simplicidade, minhas palavras não podem ser alucinógenas, precisam ser diretas. Preciso me absorver de uma vida sem significado. Porque é assim que vivia a moça, apenas respirando. Não era dada a perguntas, pois em sua infância no sertão Alagoano, aprendeu que ‘menino e tamanco só debaixo do banco’. Jamais perguntava nada. O que é, é, e ponto final. É assim, porque é assim. Mas eu sofro por ela. Só eu, a vejo encantadora. Dormindo com sua combinação suja e fétida. Suas colegas de quarto jamais diriam o quanto ela era feia e destoante do restante do mundo. No dias de inverno se encolhia naquele quarto apertado, na rua do Acre, perto do Cais, ouvindo os cães que uivavam para o luar, e logo pela manhã vez ou outra o galo cantava. Recordava então da infância deitada na cama, enquanto ouvia os roncos do estômago que rosnava de fome. Mas ela tinha lembrança das dores, como se ao medo fosse designado um prazer característico que nem ela entendia a razão. E é mesmo, às vezes a vida se sente na vontade de doer. Fora criada pela tia beata em Maceió, seus pais morreram de febres ruins. Quando criança levava cascudos, e cada qual parecia lhe arrancar os miolos da cabeça. Mas a dor maior era ser privada do seu gosto mais saboroso, seu único prazer na vida a sobremesa de goiabada com queijo depois do almoço. Era a dor e o prazer caminhando sempre juntos. E como a tia tinha deleite em deixá-la sem o gosto do desejado doce. Era castigo, mas nem ela sabia a razão de tantos castigos. Mas quando se é pobre assim não é preciso saber explicar nada. E não há pobreza nesses olhos que me lêem. Isso aqui é dispensável para os pobres. Isso é para essa média burguesia, válvula de escape da vida massacrante. E ela dormia um sono profundo e superficial, tinha crises de tosse quase todas as noites, mas nem reza, as quatro Marias lhe prestavam. Companheiras de quarto que trabalhavam nas Americanas e despencavam de sono todas as noites.  Mas a nordestina não sabia o que era ter gosto na Vida. Às vezes sonhava com carne seca, mas o jeito era comer papel bem mastigadinho para a fome passar. Essa narrativa é sobre uma incompetente, mas uma incompetente para a vida. Ela me ascende à dor que rasga o meu âmago. E dói tanto que sangra vermelho carmim. E está rasgando meu interior, é essa dor maldita, imprescindível que me acompanha todos os meses. Mas a moça nada tem a ver com a minha dor, a dor é minha, ela é que é o inverso que justifica a dor. Mas ela tinha dor, e a vida dela era dor. Mas ela não sabia viver a dor. Ela não sabia existir. Mas existir não é lógico se a ordem é morrer, mas se morrer é a ordem lógica e ela não sabia existir, ela também não sabia morrer.  Era mesmo uma imprestável. 
Trabalhava na Rua do Lavradio, era datilógrafa na firma de representante de roldanas. De ombros curvados como uma cerzideirinha aprendera o curso de datilógrafa, mas era péssima, escrevia com diversos erros e constantemente sujava o papel. Não chegava a mendigar comida, mas os únicos luxos que possuía, eram ir ao cinema uma vez ao mês e pintar de modo borrado as unhas sujas com um esmalte vermelho escarlate bem forte. Às vezes comprava uma rosa com o dinheiro que recebia e comia um ovo cozido em algum botequim. Rezava todos os dias três Ave Marias seguidos também de três améns. Tudo, porém, sem muito significado, pois ela nunca houvera experimentado Deus. Mas não perderá a fé. Afinal, quem disse que é preciso ter em quem, ou o que acreditar para se ter fé.  Não sabendo ela que de longe sua vida era infeliz. Nunca vista, nunca sentida, sempre aquele farrapo. Eu tenho raiva dela, mas ela não reage. (Explosão!) 'Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito pulo e sem pedir esmola.' Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas essa moça, ela mal tem corpo para vender, não faz mal a ninguém. 
Seu chefe Raimundo Silveira, dia desses por não mais suportar a ninharia que ela representava, resolveu por despedi-la. Ao contrário dela, sua colega de trabalho Glória era uma mulher de presença muito mais forte. Filha de açougueiro representava muito mais que ela e, por conseguinte seduzia muito mais os homens. Não era bonita também, mas era corpulenta, e isso já serviria aos olhos de muitos. Mas a datilógrafa que não era mais datilógrafa, era agora apenas mais uma nordestina no Rio de Janeiro. Nesse dia foi ao banheiro, olhou-se e viu a sua imagem quase não captada pelo espelho embaçado. Ela era uma nódoa no mundo. Nem sangue corria pelas veias daquele rosto esquálido. Por isso ela jamais poderia derramá-lo. Uma incompetente! Não servia nem para reclamar o emprego.
Em casa sem nada mais a fazer durante a noite, ligava o rádio bem baixinho e deixava-se levar escutando a Rádio Relógio que informava a hora e também dizia umas curiosidades que ela achava graça em decorar sabe-se para qual finalidade, mas é sempre bom estar informado, era cultura. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado de Carolus. Ouvira também que o único animal que não cruza com o filho era o cavalo. Mas ela também tinha medos, ela possuía medos que pareciam bons prazeres. Como quando passava um soldado perto e ela pensava – será que ele vai me matar? – Isso era bom e ruim, pode ser ambíguo, mas trazia prazer. Essa moça era assim tão comum que me causava arrepios. E se me perguntarem o que eu vou escrever em seguida, esqueçam não possui valor, perdi a hora do encontro. Rasguei as páginas.
Mês de Maio dois nordestinos se encontraram na rua no meio de uma chuva, se reconheceram como dois animais no cio. Passaram a passear e ele para ela já era como se fosse uma goiabada com queijo. Até que o a pergunta mais incisiva vibrou no ar.
            - E se me permite, qual é mesmo a sua graça?
            - Macabéa.
            - Maca, o quê?
            - Béa, foi ela obrigada a completar.
Constrangida explicou que o nome era devido a uma promessa que a sua mãe havia feito a Nossa Senhora da Boa Morte, para que a gestação vingasse e ela não morresse durante o parto. Os dois caminhavam e quase nenhuma palavra era dita. Macabéa com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, diante de uma loja de ferragens disse ao recém-namorado:
            - Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Todas as vezes que saíam juntos chovia. O nome do rapaz ela só veio descobrir depois de uns três ou quatro encontros. Olímpico de Jesus Moreira Chaves, o Chaves e o Moreira não existiam, era mentira. Só havia nele de verdadeiro mesmo o de Jesus. E esse homem não era dado a amores, era um pobre assim como Macabéa, operário metalúrgico. Porém com ambições. E o que tinha ela a oferecer-lhe? Nada que não fosse seu corpo murcho de vida. As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne de sol, carne-seca, rapadura, melado. Pois esse era o passado que ambos compartilhavam, e eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia. Pareciam irmãos, mas irmãos não se casam. Eles iriam se casar?! Não sei, mas a história vai se seguindo assim.
E como seria provar o gosto de sangue? Será que esse sentido chegaria a Macabéa? Será que ela saberia o que é ser vermelho? Só eu a amo e mais ninguém.
Foi numa noite fria de Junho, Macabéa e Olímpico caminhavam juntos pelo Cais, como é de se admirar naquele dia não choveu. Pode ter sido porque Macabéa não queria chover nesse dia. Porque a chuva apagava o calor dos dois. E todos hão de convir que as pessoas mereçam uma chance. Eles não se tocavam, mas Macabéa já sonhava com Olímpico. Vivido e ‘rodado pelo mundo’, não poderia ser esperar muito de um “cabra safado”, assim se fala no nordeste, desses. Mas Macabéa não tinha mais medo do silêncio e pouco importava quem era Olímpico antes de conhecê-la, se era rapaz de boa fama ou não, porque Olímpico já fazia parte dela, ela já o amava. Foi então no silêncio que se deu o ocorrido. Dois olhares, duas mãos, um instante, toques, movimentos, suor, e era então Macabéa, a inócua virgem inseminada por um calor que subia e descia rapidamente pelas pernas. Ela não conhecia o gosto, mas sabia que a entrega era seguida. Era uma fome vertiginosa, uma vontade de ser o outro de entrar em contato com a carne. E aquela datilógrafa sentira pela primeira e única vez na Vida o que era ter prazer. Prazer do gosto de homem, e a partir dali era já não seria a mesma. Ela era mulher para alguém. Ilusão de escritor poético, para Olímpico era mais uma. Clímax e fim. Estava agora deitada em um lugar escondido, Macabéa, pensando no que havia acabado de experimentar. Ela era agora o prazer indescritível dos sentidos. Estava liberta. Achava-se errada, pecadora e imoral. Não iria mais se casar de branco. Mas foi nesse dia que Macabéa viveu.
Olímpico apaixonara-se por Glória, sua colega de trabalho, com que já vinha traindo a pobre faz tempos. Mas agora Macabéa- mulher já sabia o que era a vida diferente do que ela sentira antes. Não iria mais se casar. Mas isso não havia ganhado tanta relevância. O futuro com Olímpico pouco nos importa ele era mais um coitado.  Havia algo maior acontecendo, uma revolução. Dentro dela começara a crescer a semente de uma nova vida. Mas ela sim, agora era Grávida. Nem todas as mulheres conseguem o dom dessa preciosidade da vida. Uma forma inexplicável de perpetuar a espécie concedendo a ela características únicas de cada um. Esse ser em formação, pequena semente plantada em terreno seco e infecundo desenvolveu-se em vida. Imediatamente Macabéa tornara-se importante. Mas só se sente a vida quando se sangra, e foram nove meses depois que Macabéa sangrou, gritou, doeu, rangeu dentes, e dela nasceu a mais nova órfã, que Macabéa chamou de Dolores, aquela que vem das dores trazendo vida. E tudo é explicado porque só se suporta a dor em busca de um objetivo maior, porque se quer viver, a dor é a doação que nos torna vivos. Ela é o ponto vital que nos torna humanos. E foi neste sopro de vida inteira que Macabéa de repente experimentou a morte. Como único momento em que foi o centro de toda razão da existência, ela era a estrela, porque se soube doer mais que a própria vida e sabia a razão da dor e tinha motivos para doer e brilhar intensamente. A morte era um encontro consigo. Morta, os sinos badalavam, mas sem que seus bronzes lhes dessem som. Agora entendo esta história. Ela é a iminência que há nos sinos que quase, quase badalam. A grandeza de cada um. Pois é, só se sabe viver quem um dia se doeu.
E eu?! Só agora me lembrei que a gente morre. Mas... Mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de jambos.
Sim.                                             

Alana Gonçalves da Silva Gusmão, Thainara Barros da Rocha e Viviane Brito Franco.
Releitura - LISPECTOR, Clarice / A hora da Estrela - Rio de Janeiro: Rocco, 1998.1ª Edição.  
Postado por Clarice Lispector às 03:58 0 comentários

Minha Dor de tempos em tempos.

Dedico este texto à dor que rasga o meu ventre e dilacera meu interior quebrantando o mais profundo questionamento da minha alma. ...
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2.3.12

O momento da Estrela


Porque a morte,se viver, muitas vezes torna-se um castigo insuportável.

Vida sem graça, sem gosto. Felicidade, só de vez em quando, como uma taça de vinho, que deve ser degustada bem devagar, guardando o sabor na boca e na memória.

Amor. Talvez nunca sentira antes, e agora uma pequena e imprudente chama é acesa no seu estúpido peito. Macabéa nunca conhecera alguém, talvez nem a si mesma, e a única coisa que consegue sentir é uma dor aguda que corrói seu peito, ou estômago. Ela não sabe!

Sonha, fantasia situações, mas o máximo que alcança são momentos mudos junto aquele de quem gosta.

Incapaz de qualquer tipo de demonstração de sentimento, ela vive seus dias; todos iguais!
Com uma rotina simplesmente tediosa. Para ela está bom, não conhece nem aspira algo melhor, por isso não reclama.

Nunca questionou o motivo de sua existência. Viver é isso e pronto. “E a morte Macabéa?” 

- Não sei o que é, logo não penso nisso. Faz sentido? Quem sabe.
Sentia-se limitadamente amada. Amada, apesar de sua falta de atitude era feliz assim, já basta!

Lhe disseram, certa vez: “ Macabéa, vá a uma cartomante! Você vai gostar!” Não foi, jamais iria a algum lugar.

- Se eu não consigo ver meu próprio amanhã, quem dirá outra pessoa. Era sua lógica e acreditava nisso. Voltou ao trabalho, rotina diária e cansativa.

Estava exausta de si, dos outros, da hipocrisia que todos os dias estava submetida. Fazer o quê? A vida é assim, as pessoas são dessa maneira. Talvez nem todas, mas todas aquelas que ela convive, utilizam desse mecanismo de sobrevivência. Marcou um encontro com aquele rapaz, aquele mesmo que lhe pagara um café ralo com leite. Mantinha suas expectativas, mas como sempre, seu semblante permanecia imóvel.

Saiu do trabalho como de costume, sempre atrasada. Tinha uma lerdeza irritante. Foi ao lugar marcado e percebeu que havia esquecido algo na mesa do escritório. Respirou e voltou ao prédio que trabalhava, subiu as escadas e enfim entrou. Vagarosamente procurou sua carteira. Isso! Era a carteira que havia esquecido. Mais atrasada ainda foi ao lugar marcado, mas notou uma aglomeração na avenida próxima.

- Não gosto de aglomerações. Gente curiosa – pensava. Aproximava-se, cada vez mais, também queria ver o motivo pelo qual aquelas pessoas estavam ali, porque não haviam ido para casa. Percebeu que alguma coisa estava estendida no chão. Será que era um cachorro? Que pena!

Não era um animal qualquer, e sim uma moça. Linda, loura nova. Choravam por aquele corpo ali, sentiriam sua falta. Macabéa pensou que poderia ser ela se não tivesse voltado ao escritório. Ficou feliz, muito feliz em saber que era outra. Se fosse ela, ninguém choraria, ninguém se importaria, seria somente mais uma; qualquer uma. Pelo menos alguém choraria por aquela moça.

Devagar e aliviada, voltou-se e caminhou até o local de encontro. Estava atrasada e não poderia chegar tarde em casa. Amanhã ainda é outro dia!




Ruane Azevedo e Bruna Bedoni
Postado por Clarice Lispector às 21:26 0 comentários
2.3.12

O momento da Estrela

Porque a morte,se viver, muitas vezes torna-se um castigo insuportável. Vida sem graça, sem gosto. Felicidade, só de vez em quando, c...
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Personagens de Carnaval


Recordar-se de um feriado de carnaval vivido na infância. Para muitos, algo vago, sem importância, mas para uma menina de apenas oito anos, cheia de sonhos e de ânsia para ver as festividades que logo chegariam, era uma imensa vitória. Pela primeira vez a bela menininha, de cabelos lisos, que queria ser mulher, iria para a festa. Recebera dias antes uma linda fantasia de rosa, dada pela mãe de sua amiga, feita por ela própria. A irmã da pequena, que assim como ela, todos os anos acompanharam a festa de longe, foi contagiada pelo brilho de felicidade instalado na pequena e resolveu de que iria acompanhá-la. A mãe de ambas mostrou-se intensamente alegre por ver suas filhas animadas. 
O dia finalmente chegou! Pela manhã, mãe e filhas se prontificaram; a mais velha separava as fantasias, enquanto sua mãe enrolava os cabelos da pequena para que ficassem frisados até a hora da festa e suas outras irmãs cuidavam dos afazeres domésticos. Ao longo do dia a ansiedade as tomara por inteiras; parecia que a hora não passava. 
É chegada a hora. Fantasiaram-se de rosa e borboleta, passaram batom forte, ruge, pegaram confete e foram para rua viver, pela primeira vez, a alegria de serem personagens de carnaval.
Laíse Costa e Queila Carvalho
Postado por Clarice Lispector às 18:42 0 comentários

Personagens de Carnaval

Recordar-se de um feriado de carnaval vivido na infância. Para muitos, algo vago, sem importância, mas para uma menina de apenas oito anos...
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Samba-enredo do meu Carnaval

Como a grande maioria dos brasileiros, a espera pelo carnaval é inquietante. Passado os festejos natalinos e do ano novo, o carnaval e tão ansiosamente aguardado, que uma contagem regressiva é estabelecida. Contagem regressiva para a festa da alegria, talvez a manifestação mais genuinamente brasileira, em que os problemas são deixados de lado abrindo alas para a felicidade, que é compartilhada por uma nação inteira. Ah carnaval! Um dos poucos momentos de alegria e satisfação plena. Ruas inteiras tomadas por pessoas fantasiadas dos mais diferentes tipos. Dançando todas ao som da mesma música, muitas vezes brega, é claro, mas quem importa? Ninguém! Afinal, a ideia de todos ali é a de se entreterem, de deixar a fantasia assumir a realidade e de serem apenas mais um personagem no enredo da alegria.

A nostalgia parece tomar conta de mim ao tentar descrever os antigos carnavais. As matinês das tardes de domingo, já eram tradição. Nos antigos bailes de Pierrô e Colombina todas as crianças iam fantasiadas, acompanhados pelos pais, para os clubes em que as marchinhas embalavam a todos. Com o passar dos anos, eu já não era o mesmo. A adolescência trouxe à tona uma nova leva de sentimentos. Passamos a compreender o quão difícil à vida é. A responsabilidade, acompanhado das cobranças começa a fazer parte de nossas vidas. Diante desse cenário, o enredo toma um novo caminho. O carnaval já não é o mesmo de outrora, passa a ter um significado: deixar a rotina de lado, mesmo que durante apenas uma semana. As ruas de Salvador, tomadas por gente de todas as partes, recebem mais uma família, que aproveita a data para o reencontro com familiares e para brincarem na folia.

Era dessa forma que o clico se repetia a cada ano. No entanto, a vida reserva para nós situações as quais não esperávamos nos deparar tão cedo. Foi assim, tão repentino como uma chuva de verão, que a minha família recebeu uma triste notícia. O patriarca da família estava com câncer de pulmão, que, já em processo de metástase tem o tratamento apenas como um paliativo para proporcionar uma melhor qualidade de vida no restante do indeterminado tempo de vida. Justo no ano em que o carnaval teria um sabor especial, seria a libertação de um ano cansativo que insistia em não me abandonar. Mas a vida tem dessas coisas não é? E a eminente morte do meu avô, mesmo desconhecendo quando irá se concretizar, parece sugar as minhas energias. De repente, parece ruir a estrutura da família.

 Com isso o carnaval passou, e enquanto outros aproveitavam as festas, minha família curtia meu avô. Aproveitamos a oportunidade para nos cercamos de carinhos e assim tentarmos juntos, unir os cacos. E é dessa forma que o samba-enredo do meu carnaval está desenrolando. O amadurecimento faz parte da existência humana, e esse foi a maior aprendizagem que levei desse carnaval.

Gustavo Carvalho e Brenda Oliveira
Postado por Clarice Lispector às 08:33 0 comentários

Samba-enredo do meu Carnaval

Como a grande maioria dos brasileiros, a espera pelo carnaval é inquietante. Passado os festejos natalinos e do ano novo, o carnaval e tão ...
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1.3.12

O retorno da Felicidade

     Eu era magra, alta, de cabelos escuros e sedosos, tinha uma pele de dá inveja, um corpo moldado como o de uma escultura e o principal: meu pai era dono de uma livraria. Enquanto ela era gorda, baixa e de cabelos crespos. Como se não bastasse, andava com os bolsos da blusa cheios de bala.Um dos seus maiores desejos era que eu lhe presenteasse com livros em seu aniversário. Mas isso era muito para mim, pois por mais que a livraria do meu pai tivesse muitos livros, eu tinha ciúmes de qualquer um deles e queria todos para mim.      
Mas a bondade existente em mim era superior a qualquer ciúme bobo, e por isso me submeti a emprestá-la o livro mais desejado: A menina que roubava livros, Markus Zusak.      
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. e acima de tudo, era o meu preferido.Como aquela menina devia me odiar, eu que era imperdoavelmente bonita e que poderia ler quantos livros quisesse, enquanto ela sonhava em ter uma estante cheia e tinha apenas uns poucos livrinhos baratos. Apesar do medo dela avacalhar meu precioso livro, me dispus a passar em sua casa para entregá-lo. E o fiz. Bem. Não diria que aquilo era uma casa, a situação era precária, parecia mais um barraco. Enfim, combinamos que em sete dias eu voltaria para buscar o livro.     Passou-se uma semana que mais parecia um mês, estava ansiosa para ter o meu livro de volta, então fui buscá-lo. Chegando lá, fiquei surpresa com a frieza daquela menina que a pouco estava a me implorar pelo empréstimo, ela não me mandou nem entrar. Olhando bem para os meus olhos, disse-me que não havia terminado de ler, e que eu voltasse no dia seguinte.                                 Boquiaberta, saí devagar, mas logo a esperança de ter meu livro de volta em breve me tomava toda.      
Mas não ficou simplesmente nisso, o plano secreto daquela menina que se mostrava tão meiga quando desejava o livro e tão fria quando o tinha em mãos, era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: ainda não tivera tempo de terminar a leitura, pois as atividades escolares e domésticas estavam tomando o seu tempo, que eu voltasse no dia seguinte.                    Mal sabia eu que mais tarde, no decorrer da vida, o drama do ‘’dia seguinte’’ com ela ia se repetir com meu coração batendo.    
 E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido. Eu já começava a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer.O que ela teria feito com meu livro? Será que ele ainda existia?    
 Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar nenhum dia sequer. Às vezes ela dizia que tinha adiantado a leitura, mas falava ainda muito para ela terminar. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob meus olhos espantados.    
 Até que um dia quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo mais uma vez a sua recusa, apareceu seu pai. O senhor achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo a conversa. Até que esse bom pai entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas você leu esse livro em três dias!    
 E o pior para esse homem não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ele pensava silenciosamente sobre a potência de perversidade de sua filha desconhecida.        
 Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai devolver o livro agora mesmo. E para mim: e você não empreste mais nada à minha filha.      
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que não disse nada. Peguei o livro. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito, quanto tempo levei para chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.      
Chegando em casa, não parava de olhá-lo, não acreditava que ele estava ali, inteiro, sem nenhuma deformação. Horas depois o abri e li algumas linhas maravilhosas. Não parava de sorrir para aquela coisa que me havia retornado: a felicidade. Eu nem me lembrava mais do quanto era bom ter aquele livro, que eu tanto gostava, de volta à minha cabeceira.    
 Às vezes sentava-me na rede, com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.  
 Não era mais uma menina com o livro: era uma mulher com seu amor de volta.


                                   Carolina Pereira e Maria Clara Andra
de
Postado por Clarice Lispector às 23:19 0 comentários
1.3.12

O retorno da Felicidade

     Eu era magra, alta, de cabelos escuros e sedosos, tinha uma pele de dá inveja, um corpo moldado como o de uma escultura e o principal...
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Sobre a escrita...


                                      


"Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras
 
O que dizer, meu Deus? Não há nada. Só silêncio. Há a máquina sendo tocada lentamente. Há o som macio da escrita.

São várias as palavras dentro do peito, uma eterna confusão que não consigo guardar por muito tempo e as histórias acabam voando. O que é que eu posso escrever? Às vezes fico tentando desenrolar um texto, alinhavando fio por fio do pensamento, procurando frases no chão como se olhasse o céu. Tento fingir que é fácil. Mas não é. A palavra é forte demais para ser maquiada, ela é, e apenas. E eu só poderia amá-la. A palavra é meu instrumento de transcendência, é quase tão insuportável quanto a perfeição. Cada palavra é uma ideia. Cada palavra materializa o espírito. E quanto mais palavras eu conheço, mais próxima me sinto do eco da liberdade. 
 
Os nossos sentimentos não passam de inexistências se não forem moldados em palavras. É preciso ser identificável, mas apenas nas entrelinhas. O mistério é o segredo da palavra, ela tem que ser como uma neblina que encobre a lucidez e a transparência do ser e foge da coerência. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras. E por esconderem, é que me torno simples. Ou complexa, aos olhos de quem busca compreensão. 
 
Qual é mesmo a palavra secreta? Aquela que toma o meu inconsciente? Aquela que não sabe lidar com os sentimentos? Aquela que sempre está perdida entre as letras no papel? Não. Não. Não. É aquela em que eu ousei. Não sei por que não ouso dizê-la? É como se fosse o meu maior segredo. O elo perdido da escrita. Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Acredito que seja porque é esta palavra, a única que deixa o vazio permanecer em mim e me completa. Quero continuar existindo nela, no único ponto em que me encontro segura, todas as outras palavras são uma mentira, fazem parte do abismo insondável em que temo cair. São essas palavras que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. O que eu digo sempre tem sentido e há uma beleza única na incoerência. Dizer o que se sabe significa vulnerabilidade. Dizer o que não se sabe é exibicionismo. Temer o que se sabe é mediocridade. O que não digo é o que não sei e não há nada que me interesse mais do que o que eu não sei, porque eu ainda preciso saber. E as palavras me dão a oportunidade de descobrir. São como a música, tocam o mais íntimo do ser e são tão inconstantes quanto às batidas ritmadas da vida. As prefiro não saber demais, porque não saberia o que fazer com esse saber. Analogamente, desejei muitas vezes não saber escrever, assim talvez me guardasse mais e me protegesse de mim mesma. Mas não consigo. Ainda quero escrever, anotar cada frase que penso e que se encontra voando na mente, porque muita coisa se perde no instante. Escrever é como guardar em um refúgio, em um lugar seguro, um abrigo que nunca vai se desmanchar, mesmo sendo feito de ideias.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse  ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranquilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial.

Nesse ritmo lento das palavras, escrevo as minhas diversas vidas. As vidas que tive, as que finjo ter, as que ainda terei. Escrever é sangue pulsando na veia.

Só irei parar de escrever quando me encontrar de verdade e sinto que isso nunca acontecerá
 
Sobre escrever. O que dizer meu Deus? Simplesmente as palavras do homem.


Postado por Clarice Lispector às 22:40 0 comentários

Sobre a escrita...

                                       " Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras   O que dizer, me...
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