1.3.12

Felicidade Clandestina [Parte I]

"Não era mais uma menina com seu livro: era uma mulher com seu amante"

 Dentre todos os ensinamentos e códigos morais que meus pais sempre fizeram questão de nos passar, a demonização da inveja esteve primordiavelmente nos principais tópicos das longas conversas, fossem elas nos minutos antes de dormir ou nas poucas vezes em que comíamos todos juntos à mesa. Lembro bem das palavras do pai que nos obrigava a não deixar nada nos pratos, alegando quantos lá fora gostariam de ocupar uma daquelas cadeiras. Dizia ele de seu jeito sábio, mas rude: a única inveja que Deus não castiga é de poder ter o que comer e onde dormir. Tem vocês isso tudo e mais um monte, vão ter inveja então do quê?
   
 Não sabendo ele que em meu íntimo, por mais que tentasse afastá-la de todas as maneiras, só crescia uma vontade de ocupar não uma cadeira à mesa, mas qualquer cantinho onde pudesse me sentar e saborear um dos tantos livros que preenchiam a vasta biblioteca particular de uma de nossas colegas de escola. Meu pai jamais entenderia que minha inveja era condizente a que ele dizia não ser julgada por Deus. Eu tinha fome de ler e a diferença só estava em por onde o alimento viria a entrar. Meus olhos quando em frente a um livro, eram acrescidos da capacidade de mais dois sentidos. Eu podia sentir o cheiro das páginas, podia sentir o seu gosto. Nesse sistema de alimentação, diferente do comum à boca, entrava em cena pra balbuciar cada palavra ou pra ficar aberta perante as surpresas que cada linha proporcionava.

 Eu acessava mundos, me tornava os personagens e tinha depois o prazer de me imaginar vivenciando aquelas mesmas situações, aquelas mesmas sensações. Revoltava-me, no entanto, como poderia alguém com tal oportunidade não fazer uso dela? A minha colega, filha do dono da formidável biblioteca, ou paraíso como via aquela imensidão de livros me fitando, tinha seus interesses em outros focos, terrivelmente tão banais que me envergonho de dizê-los. Preferia a gordinha ruiva, fazer fofoca da vida alheia ou humilhar quem segundo ela: não tinha o que rato roer. Não bastava tanta arrogância, tinha ainda que ser burra. Burra ao ponto de, penso eu, jamais ter lido um livro sequer daqueles tantos, a menos que um deles fosse um manual de crueldade.
  Eram, portanto, dois pólos opostos de felicidade. A minha, não poderia estar completa com tamanha injustiça. Minha fome por leitura era muito pouco saciada. Ao contrário da outra, minha biblioteca se resumia a meia dúzia de volumes extremamente gastos e que há muito eu já os havia decorado. Feliz seria eu quando pudesse ter pleno acesso aos quantos livros bem quisesse. Os iria engolir, a todos, mas com cuidado pra que durasse por toda vida minha fonte de alimento. 
{continua...} 
Postado por Clarice Lispector às 18:33

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