3.3.12

Minha Dor de tempos em tempos.





Dedico este texto à dor que rasga o meu ventre e dilacera meu interior quebrantando o mais profundo questionamento da minha alma. O significado da vida.

Como posso eu estar Vivo? Não tenho grandezas nem sou supérfluo, mas também não tenho resposta que possa ser dada a essa pergunta. Só sei que a gente um dia morre. E não existe palavra que signifique a minha vida. Não entendo o porquê de estar escrevendo, se é que existe mesmo finalidade para isso, mas algo me atrai para o papel. É essa admiração corrupta do que não é belo, ou do que meus olhos moribundos viram, do que é estranho e confuso. Nunca gostei do que é fácil, estou longe da mediocridade. Apenas estou vivendo dias, fechado em um lugar pequeno e ermo, sem nenhum luxo, e renunciei meus prazeres para ver se conseguiria sentir o que é ser anódino. Queria eu, entender a beleza, o prazer da atração que me traz aquele ser que só de ser visto causa repugnância a qualquer homem de bem. Ela é um nada. Mas como nada ainda é muito, nem isso ela pode ser. Ela é insossa e impenetrável. Ninguém nunca olhou pra ela, nem ela se olha por dentro. Quem é? Não importa, ela é ninguém.
Todos os dias, usa para trabalhar roupas que desprezam o mínimo da moda. É magra e deslustrada, e seria um insulto compará-la a um cachorro esguio de rua. Porque este pelo menos possui a liberdade de ser. Uma vida parca, insignificante. Mas era uma mulher, e ela me atiçava como uma feiticeira. Nada nem ninguém me atordoaram tanto. Já não tenho ciência de como isso tudo vai terminar. A nordestina, ela me causava enjôo. Ela era bem como eu, vivia para si o presente.  E se um dia se casar, vai se casar de branco, virgem e intocável. Mas tenho em minhas mãos o traçado de uma história triste. Talvez outro dia eu escreva uma história bonita, daquelas que fazem a gente chorar e soluçar de emoção. Mas agora quero buscar a verdade nua. Tenho nas palavras o destino de uma moça que nem pobreza enfeitada tem. Pois que a datilógrafa está montada em meus ombros. Vejo-a de frente para um espelho e nós nos intertocamos. Mas eu sou tendencioso, e nesse meu malabarismo, posso palavrear de modo a fazer com que o outro me acompanhe. Parei de ler meus livros, não posso me contaminar, preciso ganhar a mais humilde simplicidade, minhas palavras não podem ser alucinógenas, precisam ser diretas. Preciso me absorver de uma vida sem significado. Porque é assim que vivia a moça, apenas respirando. Não era dada a perguntas, pois em sua infância no sertão Alagoano, aprendeu que ‘menino e tamanco só debaixo do banco’. Jamais perguntava nada. O que é, é, e ponto final. É assim, porque é assim. Mas eu sofro por ela. Só eu, a vejo encantadora. Dormindo com sua combinação suja e fétida. Suas colegas de quarto jamais diriam o quanto ela era feia e destoante do restante do mundo. No dias de inverno se encolhia naquele quarto apertado, na rua do Acre, perto do Cais, ouvindo os cães que uivavam para o luar, e logo pela manhã vez ou outra o galo cantava. Recordava então da infância deitada na cama, enquanto ouvia os roncos do estômago que rosnava de fome. Mas ela tinha lembrança das dores, como se ao medo fosse designado um prazer característico que nem ela entendia a razão. E é mesmo, às vezes a vida se sente na vontade de doer. Fora criada pela tia beata em Maceió, seus pais morreram de febres ruins. Quando criança levava cascudos, e cada qual parecia lhe arrancar os miolos da cabeça. Mas a dor maior era ser privada do seu gosto mais saboroso, seu único prazer na vida a sobremesa de goiabada com queijo depois do almoço. Era a dor e o prazer caminhando sempre juntos. E como a tia tinha deleite em deixá-la sem o gosto do desejado doce. Era castigo, mas nem ela sabia a razão de tantos castigos. Mas quando se é pobre assim não é preciso saber explicar nada. E não há pobreza nesses olhos que me lêem. Isso aqui é dispensável para os pobres. Isso é para essa média burguesia, válvula de escape da vida massacrante. E ela dormia um sono profundo e superficial, tinha crises de tosse quase todas as noites, mas nem reza, as quatro Marias lhe prestavam. Companheiras de quarto que trabalhavam nas Americanas e despencavam de sono todas as noites.  Mas a nordestina não sabia o que era ter gosto na Vida. Às vezes sonhava com carne seca, mas o jeito era comer papel bem mastigadinho para a fome passar. Essa narrativa é sobre uma incompetente, mas uma incompetente para a vida. Ela me ascende à dor que rasga o meu âmago. E dói tanto que sangra vermelho carmim. E está rasgando meu interior, é essa dor maldita, imprescindível que me acompanha todos os meses. Mas a moça nada tem a ver com a minha dor, a dor é minha, ela é que é o inverso que justifica a dor. Mas ela tinha dor, e a vida dela era dor. Mas ela não sabia viver a dor. Ela não sabia existir. Mas existir não é lógico se a ordem é morrer, mas se morrer é a ordem lógica e ela não sabia existir, ela também não sabia morrer.  Era mesmo uma imprestável. 
Trabalhava na Rua do Lavradio, era datilógrafa na firma de representante de roldanas. De ombros curvados como uma cerzideirinha aprendera o curso de datilógrafa, mas era péssima, escrevia com diversos erros e constantemente sujava o papel. Não chegava a mendigar comida, mas os únicos luxos que possuía, eram ir ao cinema uma vez ao mês e pintar de modo borrado as unhas sujas com um esmalte vermelho escarlate bem forte. Às vezes comprava uma rosa com o dinheiro que recebia e comia um ovo cozido em algum botequim. Rezava todos os dias três Ave Marias seguidos também de três améns. Tudo, porém, sem muito significado, pois ela nunca houvera experimentado Deus. Mas não perderá a fé. Afinal, quem disse que é preciso ter em quem, ou o que acreditar para se ter fé.  Não sabendo ela que de longe sua vida era infeliz. Nunca vista, nunca sentida, sempre aquele farrapo. Eu tenho raiva dela, mas ela não reage. (Explosão!) 'Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito pulo e sem pedir esmola.' Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas essa moça, ela mal tem corpo para vender, não faz mal a ninguém. 
Seu chefe Raimundo Silveira, dia desses por não mais suportar a ninharia que ela representava, resolveu por despedi-la. Ao contrário dela, sua colega de trabalho Glória era uma mulher de presença muito mais forte. Filha de açougueiro representava muito mais que ela e, por conseguinte seduzia muito mais os homens. Não era bonita também, mas era corpulenta, e isso já serviria aos olhos de muitos. Mas a datilógrafa que não era mais datilógrafa, era agora apenas mais uma nordestina no Rio de Janeiro. Nesse dia foi ao banheiro, olhou-se e viu a sua imagem quase não captada pelo espelho embaçado. Ela era uma nódoa no mundo. Nem sangue corria pelas veias daquele rosto esquálido. Por isso ela jamais poderia derramá-lo. Uma incompetente! Não servia nem para reclamar o emprego.
Em casa sem nada mais a fazer durante a noite, ligava o rádio bem baixinho e deixava-se levar escutando a Rádio Relógio que informava a hora e também dizia umas curiosidades que ela achava graça em decorar sabe-se para qual finalidade, mas é sempre bom estar informado, era cultura. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado de Carolus. Ouvira também que o único animal que não cruza com o filho era o cavalo. Mas ela também tinha medos, ela possuía medos que pareciam bons prazeres. Como quando passava um soldado perto e ela pensava – será que ele vai me matar? – Isso era bom e ruim, pode ser ambíguo, mas trazia prazer. Essa moça era assim tão comum que me causava arrepios. E se me perguntarem o que eu vou escrever em seguida, esqueçam não possui valor, perdi a hora do encontro. Rasguei as páginas.
Mês de Maio dois nordestinos se encontraram na rua no meio de uma chuva, se reconheceram como dois animais no cio. Passaram a passear e ele para ela já era como se fosse uma goiabada com queijo. Até que o a pergunta mais incisiva vibrou no ar.
            - E se me permite, qual é mesmo a sua graça?
            - Macabéa.
            - Maca, o quê?
            - Béa, foi ela obrigada a completar.
Constrangida explicou que o nome era devido a uma promessa que a sua mãe havia feito a Nossa Senhora da Boa Morte, para que a gestação vingasse e ela não morresse durante o parto. Os dois caminhavam e quase nenhuma palavra era dita. Macabéa com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, diante de uma loja de ferragens disse ao recém-namorado:
            - Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Todas as vezes que saíam juntos chovia. O nome do rapaz ela só veio descobrir depois de uns três ou quatro encontros. Olímpico de Jesus Moreira Chaves, o Chaves e o Moreira não existiam, era mentira. Só havia nele de verdadeiro mesmo o de Jesus. E esse homem não era dado a amores, era um pobre assim como Macabéa, operário metalúrgico. Porém com ambições. E o que tinha ela a oferecer-lhe? Nada que não fosse seu corpo murcho de vida. As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne de sol, carne-seca, rapadura, melado. Pois esse era o passado que ambos compartilhavam, e eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia. Pareciam irmãos, mas irmãos não se casam. Eles iriam se casar?! Não sei, mas a história vai se seguindo assim.
E como seria provar o gosto de sangue? Será que esse sentido chegaria a Macabéa? Será que ela saberia o que é ser vermelho? Só eu a amo e mais ninguém.
Foi numa noite fria de Junho, Macabéa e Olímpico caminhavam juntos pelo Cais, como é de se admirar naquele dia não choveu. Pode ter sido porque Macabéa não queria chover nesse dia. Porque a chuva apagava o calor dos dois. E todos hão de convir que as pessoas mereçam uma chance. Eles não se tocavam, mas Macabéa já sonhava com Olímpico. Vivido e ‘rodado pelo mundo’, não poderia ser esperar muito de um “cabra safado”, assim se fala no nordeste, desses. Mas Macabéa não tinha mais medo do silêncio e pouco importava quem era Olímpico antes de conhecê-la, se era rapaz de boa fama ou não, porque Olímpico já fazia parte dela, ela já o amava. Foi então no silêncio que se deu o ocorrido. Dois olhares, duas mãos, um instante, toques, movimentos, suor, e era então Macabéa, a inócua virgem inseminada por um calor que subia e descia rapidamente pelas pernas. Ela não conhecia o gosto, mas sabia que a entrega era seguida. Era uma fome vertiginosa, uma vontade de ser o outro de entrar em contato com a carne. E aquela datilógrafa sentira pela primeira e única vez na Vida o que era ter prazer. Prazer do gosto de homem, e a partir dali era já não seria a mesma. Ela era mulher para alguém. Ilusão de escritor poético, para Olímpico era mais uma. Clímax e fim. Estava agora deitada em um lugar escondido, Macabéa, pensando no que havia acabado de experimentar. Ela era agora o prazer indescritível dos sentidos. Estava liberta. Achava-se errada, pecadora e imoral. Não iria mais se casar de branco. Mas foi nesse dia que Macabéa viveu.
Olímpico apaixonara-se por Glória, sua colega de trabalho, com que já vinha traindo a pobre faz tempos. Mas agora Macabéa- mulher já sabia o que era a vida diferente do que ela sentira antes. Não iria mais se casar. Mas isso não havia ganhado tanta relevância. O futuro com Olímpico pouco nos importa ele era mais um coitado.  Havia algo maior acontecendo, uma revolução. Dentro dela começara a crescer a semente de uma nova vida. Mas ela sim, agora era Grávida. Nem todas as mulheres conseguem o dom dessa preciosidade da vida. Uma forma inexplicável de perpetuar a espécie concedendo a ela características únicas de cada um. Esse ser em formação, pequena semente plantada em terreno seco e infecundo desenvolveu-se em vida. Imediatamente Macabéa tornara-se importante. Mas só se sente a vida quando se sangra, e foram nove meses depois que Macabéa sangrou, gritou, doeu, rangeu dentes, e dela nasceu a mais nova órfã, que Macabéa chamou de Dolores, aquela que vem das dores trazendo vida. E tudo é explicado porque só se suporta a dor em busca de um objetivo maior, porque se quer viver, a dor é a doação que nos torna vivos. Ela é o ponto vital que nos torna humanos. E foi neste sopro de vida inteira que Macabéa de repente experimentou a morte. Como único momento em que foi o centro de toda razão da existência, ela era a estrela, porque se soube doer mais que a própria vida e sabia a razão da dor e tinha motivos para doer e brilhar intensamente. A morte era um encontro consigo. Morta, os sinos badalavam, mas sem que seus bronzes lhes dessem som. Agora entendo esta história. Ela é a iminência que há nos sinos que quase, quase badalam. A grandeza de cada um. Pois é, só se sabe viver quem um dia se doeu.
E eu?! Só agora me lembrei que a gente morre. Mas... Mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de jambos.
Sim.                                             

Alana Gonçalves da Silva Gusmão, Thainara Barros da Rocha e Viviane Brito Franco.
Releitura - LISPECTOR, Clarice / A hora da Estrela - Rio de Janeiro: Rocco, 1998.1ª Edição.  
Postado por Clarice Lispector às 03:58

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