1.3.12

O retorno da Felicidade

     Eu era magra, alta, de cabelos escuros e sedosos, tinha uma pele de dá inveja, um corpo moldado como o de uma escultura e o principal: meu pai era dono de uma livraria. Enquanto ela era gorda, baixa e de cabelos crespos. Como se não bastasse, andava com os bolsos da blusa cheios de bala.Um dos seus maiores desejos era que eu lhe presenteasse com livros em seu aniversário. Mas isso era muito para mim, pois por mais que a livraria do meu pai tivesse muitos livros, eu tinha ciúmes de qualquer um deles e queria todos para mim.      
Mas a bondade existente em mim era superior a qualquer ciúme bobo, e por isso me submeti a emprestá-la o livro mais desejado: A menina que roubava livros, Markus Zusak.      
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. e acima de tudo, era o meu preferido.Como aquela menina devia me odiar, eu que era imperdoavelmente bonita e que poderia ler quantos livros quisesse, enquanto ela sonhava em ter uma estante cheia e tinha apenas uns poucos livrinhos baratos. Apesar do medo dela avacalhar meu precioso livro, me dispus a passar em sua casa para entregá-lo. E o fiz. Bem. Não diria que aquilo era uma casa, a situação era precária, parecia mais um barraco. Enfim, combinamos que em sete dias eu voltaria para buscar o livro.     Passou-se uma semana que mais parecia um mês, estava ansiosa para ter o meu livro de volta, então fui buscá-lo. Chegando lá, fiquei surpresa com a frieza daquela menina que a pouco estava a me implorar pelo empréstimo, ela não me mandou nem entrar. Olhando bem para os meus olhos, disse-me que não havia terminado de ler, e que eu voltasse no dia seguinte.                                 Boquiaberta, saí devagar, mas logo a esperança de ter meu livro de volta em breve me tomava toda.      
Mas não ficou simplesmente nisso, o plano secreto daquela menina que se mostrava tão meiga quando desejava o livro e tão fria quando o tinha em mãos, era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: ainda não tivera tempo de terminar a leitura, pois as atividades escolares e domésticas estavam tomando o seu tempo, que eu voltasse no dia seguinte.                    Mal sabia eu que mais tarde, no decorrer da vida, o drama do ‘’dia seguinte’’ com ela ia se repetir com meu coração batendo.    
 E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido. Eu já começava a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer.O que ela teria feito com meu livro? Será que ele ainda existia?    
 Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar nenhum dia sequer. Às vezes ela dizia que tinha adiantado a leitura, mas falava ainda muito para ela terminar. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob meus olhos espantados.    
 Até que um dia quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo mais uma vez a sua recusa, apareceu seu pai. O senhor achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo a conversa. Até que esse bom pai entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas você leu esse livro em três dias!    
 E o pior para esse homem não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ele pensava silenciosamente sobre a potência de perversidade de sua filha desconhecida.        
 Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai devolver o livro agora mesmo. E para mim: e você não empreste mais nada à minha filha.      
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que não disse nada. Peguei o livro. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito, quanto tempo levei para chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.      
Chegando em casa, não parava de olhá-lo, não acreditava que ele estava ali, inteiro, sem nenhuma deformação. Horas depois o abri e li algumas linhas maravilhosas. Não parava de sorrir para aquela coisa que me havia retornado: a felicidade. Eu nem me lembrava mais do quanto era bom ter aquele livro, que eu tanto gostava, de volta à minha cabeceira.    
 Às vezes sentava-me na rede, com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.  
 Não era mais uma menina com o livro: era uma mulher com seu amor de volta.


                                   Carolina Pereira e Maria Clara Andra
de
Postado por Clarice Lispector às 23:19

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